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Medidas de combate ao Coronavírus e a importância da ação estatal

Texto escrito em 30/05/2020 como Trabalho Final da disciplina CE863: Setor Público componente da grade curricular do curso de Ciências Econômicas do IE-UNICAMP. A disciplina foi ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Alexandre Zanchetta Borghi.

MARCOS REVEJES PEDROSO

1. As três principais funções do Estado

    Segundo MUSGRAVE & MUSGRAVE (1980), é notório de que o sistema de mercado não é capaz de desempenhar sozinho todas as funções econômicas. A atuação do governo é necessária para guiar, corrigir e suplementar o mecanismo de mercado em diversos aspectos. Tendo em mente que o mercado é imperfeito, o tamanho apropriado do setor público é, de fato, uma questão técnica e não ideológica. O autor segue sua visão, elucidando as três principais funções estatais: alocativa, distributiva e estabilizadora.
    A função alocativa é expressa no fornecimento de bens públicos, ou do processo pelo qual a totalidade dos recursos é dividida para utilização no setor público e no privado, e pelo qual se estabelece a composição do conjunto dos bens públicos. Bens públicos são aqueles que não podem ser fornecidos através do sistema de mercado (transações entre consumidores e produtores). Desta forma, a função alocativa demonstra-se no papel do Estado em corrigir falhas de mercado, seja proporcionando bens e serviços públicos para a população (iluminação pública, por exemplo) ou mesmo desenvolvendo produtos não oferecidos pelo mercado, por meio de empresas estatais.
    A função distributiva é expressa nos ajustes que o Estado promove na distribuição de renda e riqueza, a fim de assegurar adequação a um estado de distribuição socialmente aceito como justo. É evidente ao Estado a necessidade de prevenir a miséria, de forma que estabelecer limites toleráveis aos níveis de renda das camadas mais carentes da população, se mostra mais eficiente que preocupar-se com a determinação de limites para as camadas de renda mais alta. Os principais mecanismos da função distributiva são: a) transferências que combinam imposto de renda progressivo para famílias abastadas e subsídios para famílias carentes; b) utilização de imposto de renda progressivo para o financiamento de serviços públicos, como por exemplo, programas de moradias populares; c) Conjunto de impostos e subsídios, sendo os primeiros voltados aos bens consumidos pelas camadas superiores de renda e os subsídios favoreceriam os bens-salários, característicos das camadas carentes. Deste modo, a função distributiva executada via impostos diretos sobre a renda e por transferências, é associada ao processo conhecido como imposto de renda negativo, no qual pessoas de faixas de renda mais baixas recebem pagamentos suplementares do governo, em vez de pagarem impostos (Programa Bolsa Família é um exemplo).
    A função estabilizadora é expressa na utilização de políticas macroeconômicas que visam a manutenção do nível de emprego, estabilidade de preços, crescimento econômico, bem como estabilidade do balanço de pagamentos. O Estado atua principalmente nesta função por meio das políticas monetária e fiscal. A política monetária opera por meio de alterações no custo de disponibilidade do crédito (taxa de juros) e também através das reações dos detentores de ativos financeiros às mudanças na oferta de moeda. Já a política fiscal atua via efeitos provocados pelos impostos e pagamentos de transferências sobre a renda e em decorrência, sobre gastos privados; esta também atua diretamente por meio do gasto público (infraestrutura, por exemplo).

2. Ação do Estado segundo diversas escolas de pensamento


    Diversas visões econômicas estabelecem a importância da ação do Estado na economia em momentos de crise. A visão keynesiana surge como resposta à Crise de 1929 e demais teorias baseadas nos argumentos de Keynes se expressam nos desdobramentos da 2ª Guerra Mundial e da Crise de 2008. Atualmente devemos usar do arcabouço teórico já estabelecido para defender a necessária ação anti-cíclica dos governos no cenário da pandemia de Coronavírus, como via de manutenção do emprego e da renda. Logo abaixo estão expressas algumas destas escolas de pensamento econômico, que diferem na política macroeconômica principal, seja fiscal ou monetária, mas expressam o papel indispensável do Estado em mitigar os efeitos de depressões econômicas. 

        Segundo CARVALHO (2008), a ideia central proposta por Keynes é que a demanda agregada não é suficiente para induzir a ocupação de capacidade produtiva, de forma a alcançar o pleno emprego. Estamos inseridos em uma economia de mercado, que como diz o próprio nome, visa atender as demandas do mercado e não as necessidades dos indivíduos que o compõem. Neste contexto de busca incessante pelo lucro, se expressam dois problemas centrais do capitalismo: a concentração de renda e riqueza nas mãos de indivíduos com baixa propensão ao consumo proporcional à sua renda, o que dificulta a sustentação do pleno emprego; e a incapacidade de geração de demanda agregada necessária para sustentar o pleno emprego e plena utilização de capacidade produtiva. O autor postula que para resolver estes problemas, o Estado deve adotar políticas macroeconômicas que garantam o surgimento de demanda agregada. Para tal, o mesmo precisa utilizar de mecanismos como a política monetária, principalmente via taxa de juros, e a política fiscal, seja por meio de variações na renda disponível dos agentes (por meio dos impostos) ou então, pela complementação do gasto agregado, por meio das despesas governamentais. 
    De acordo com ARESTIS (2009), o Novo Consenso Macroeconômico afirma que a política fiscal é ineficiente como mecanismo de estabilização macroeconômica. Segundo esta corrente de pensamento, isso ocorre devido ao fato da política fiscal impactar as expectativas dos agentes, ao passo que a mesma gera efeitos tanto no lado da demanda quanto da oferta, que em conjunto enfraquecem o resultado da política. O autor pontua que estudos recentes apresentam uma visão contrária à supracitada, de que a política fiscal seria efetiva sobre as variáveis macroeconômicas. Um dos motivos para a defesa de que a política fiscal é nula, é de que os estudos que o arcabouço teórico do NCM se fundamenta são focados em países desenvolvidos. Porém, devido ao sistema tributário de cunho pró-cíclico dos países subdesenvolvidos, bem como à maior propensão ao consumo nestes países, a atuação via política fiscal ganha relevância.
    Segundo LOPREATO (2013), os novos-keynesianos defendem que a política monetária é o instrumento mais útil de política, tendo como papel gerir a demanda agregada e a garantir a estabilidade econômica. Para que esse papel seja exercido, é preciso que a credibilidade das entidades monetárias seja assegurada, o que levanta o argumento de independência do Banco Central no debate. O autor pontua que a escola em questão define a política fiscal como secundária e ineficiente, sendo seu principal papel ser fiadora da atividade econômica, seja pela sustentação do comportamento das variáveis macroeconômicas ou ao exercer o papel de âncora da política monetária.

3. Políticas fiscais do Brasil, EUA, Alemanha e China


    Em meio ao cenário pandêmico da COVID-19, com mais de quatro milhões de infectados e 280 mil mortos, os países têm se unido para combater o vírus e seus impactos econômicos. Esse esforço dos estados nacionais ocorre tanto pela via corporativa, com empréstimos e linhas de crédito para pagamento de folha de pagamento, quanto pela via de apoio aos trabalhadores mais afetados, por meio de benefícios assistenciais ou medidas de manutenção do emprego e da renda. A seguir serão apresentadas as principais medidas fiscais tomadas pelos países como Brasil, Estados Unidos, Alemanha e China.
    No Brasil, há mais de 160 mil casos confirmados e onze mil mortos decorrentes da pandemia. Em meio a diversas medidas de mitigação incluindo fechamento de escolas, restrições a reuniões públicas e a serviços não essenciais, o governo tem tomado os seguintes pontos de política fiscal: a) Auxílio emergencial de R$600,00, por três meses, voltado para trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais que compõem famílias de baixa renda, além de trabalhadores intermitentes que estejam inativos no momento. Mães que sejam arrimo de família poderão receber até R$1200,00. O auxílio deve chegar para 54 milhões de brasileiros; b) Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda, que busca preservar até 8,5 milhões de empregos, beneficiando cerca de 24,5 milhões de trabalhadores formais. O objetivo da medida é reduzir os impactos sociais ocasionados pelo estado de calamidade pública e de emergência da saúde pública; c) Impostos e taxas de importação mais baixas de suprimentos médicos; d) Transferências do governo federal para os estaduais para apoiar expansão de gastos em saúde e como proteção contra a queda inesperada de receitas; e) Expansão de linhas de crédito dos bancos públicos para empresas e famílias, com foco no capital de giro, e linha de crédito de 0,5% do PIB para cobrir custos da folha de pagamento. 
    Os Estados Unidos da América estão enfrentando um surto de COVID-19 que já resultou em aproximadamente 80.000 mortes e mais de 1,3 milhão de infectados. Em resposta, o governo implementou medidas incluindo restrições a viagens, distanciamento social, declaração de estados de emergência, fechamento de escolas, bares e restaurantes e aumento na testagem. A política fiscal tem sido expressa em: a) Programa de proteção de salário de US $ 484 bilhões e Lei de aprimoramento de assistência médica, voltado principalmente para contribuir com empréstimos e subsídios para pequenos negócios, bem como financiamento de hospitais e desenvolvimento de testes para o vírus; b) Lei de Ajuda, Alívio e Segurança Econômica (CARES Act, na sigla em inglês) estimada em US $ 2,3 trilhões (cerca de 11% do PIB). A lei inclui descontos fiscais, expansão do seguro-desemprego, rede de segurança alimentar para famílias carentes, financiamento para evitar falência de empresas; empréstimos a pequenos negócios, financiamento de hospitais e assistência internacional; c) Lei de Planejamento Complementar e Resposta ao Corona-vírus de US$8,3 bilhões e Lei de Resposta das Famílias de US$192 bilhões. Juntos, fornecem cerca de 1% do PIB para: i) teste do vírus; financiamento ao Medicaid; desenvolvimento de vacinas, medicamentos e diagnósticos; ii) duas semanas de licença médica paga; até 3 meses de licença de emergência para os infectados (com 2/3 de salário); assistência alimentar; iii) ampliação de subsídios e empréstimos a pequenos negócios; iv) assistência internacional.
      Na Alemanha são aproximadamente 172 mil casos de COVID-19 e mais de sete mil mortes. O governo tem respondido com diversas medidas para conter o vírus, tais como fechamento de fronteiras, escolas e negócios não essenciais, isolamento social e banimento de reuniões públicas. O governo federal adotou um orçamento complementar de €156 bilhões (4,9% do PIB), que inclui: i) gastos em equipamentos de saúde, capacidade hospitalar e P&D (vacinas); ii) acesso expandido a subsídios de trabalho de curto prazo, a fim de preservar empregos e renda dos trabalhadores; iii) €50 bilhões em doações para pequenos empreendedores e trabalhadores independentes gravemente afetados pelo surto de COVID-19. Além disso, por meio do fundo de estabilização econômica (WSF) e do banco público de desenvolvimento Kfw, o governo está expandindo o volume e acesso a garantias para empresas e seguradoras de crédito. Além do governo federal, muitos governos estaduais anunciaram medidas para apoiar suas economias, totalizando €48 bilhões em apoio direto e €73 bilhões em garantias de empréstimos em nível estadual. 
    A China tem enfrentado um surto com mais 84 mil casos confirmados de COVID-19 e aproximadamente cinco mil mortes. O governo impôs medidas estritas de contenção, incluindo o adiamento do feriado nacional de Ano Novo Lunar, quarentena na província de Hubei, isolamento social, restrições de mobilidade em nível nacional e um período de quarentena de 14 dias para trabalhadores migrantes que retornarem de suas regiões. Foram anunciadas medidas fiscais e planos de financiamento representam ¥2,6 trilhões (2,5% do PIB), dos quais 1,2% do PIB já estão sendo implementados. As principais medidas incluem: i) aumento dos gastos com prevenção de controle de epidemias; ii) produção de equipamentos médicos; iii) liberação acelerada do seguro-desemprego aos trabalhadores; iv) isenção de impostos e de contribuições para a previdência social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARESTIS, P. “Fiscal policy within the „New Consensus Macroeconomics‟ Framework”. In: CRELL, J.; SAWYER, M. (Eds.) Current thinking on fiscal policy. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009.

CARVALHO, F. C. “Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana”. Revista Análise Econômica, ano 26, n.50, Porto Alegre, setembro 2008, p.7-25.

INTERNATIONAL MONETARY FUND. Policy Responses to COVID-19. Disponível em: <www.imf.org/en/Topics/imf-and-covid19/Policy-Responses-to-COVID-19>. Acesso em 10 mai. 2020.

JOHN HOPKINS UNIVERSITY & MEDICINE. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University. Disponível em: <coronavirus.jhu.edu/map.html>. Acesso em 11 mai. 2020.

LOPREATO, F. L. C. Caminhos da política fiscal do Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

MINISTÉRIO DA CASA CIVIL. Medidas adotadas pelo Governo Federal no combate ao coronavírus. Disponível em: <www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/maio/medidas-adotadas-pelo-governo-federal-no-combate-ao-coronavirus-30-de-abril>. Acesso em 10 mai. 2020.

MUSGRAVE, R.A., e Musgrave, P. “Finanças Públicas Teoria e Prática”, EDUSP, São Paulo, 1980.

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